sexta-feira, 29 de agosto de 2014

VOU CONTRARIAR INTERESSES E TOMAR MEDIDAS AMARGAS

ZH 29 de agosto de 2014 | N° 17906



ENTREVISTA LUCIANA GENRO
Candidata do PSOL à Presidência



A candidata à Presidência Luciana Genro (PSOL) prometeu ontem, em Porto Alegre, adotar “medidas amargas” para colocar o Brasil nos eixos – o que para ela significa libertar o país do jugo do mercado financeiro e dos grilhões do grande capital.

Segunda entrevistada do Painel RBS – a primeira foi Dilma Rousseff (PT) –, Luciana afirmou que, se eleita, irá “contrariar interesses”.

Reafirmou a intenção de taxar grandes fortunas, extinguir isenções fiscais para bancos, aumentar a tributação sobre lucros e suspender o pagamento da dívida.

A candidata reclamou do tratamento desigual da mídia e criticou adversários que adotam o “discurso fácil”:

– Quem não demonstra quais interesses vai contrariar, mente. Porque, na prática, depois das eleições, vai deixar de lado todas as promessas e vai continuar reproduzindo a mesma velha política.

Filha do governador e candidato à reeleição Tarso Genro (PT), a ex-deputada recusou-se a avaliar a gestão do pai. Já ao governo Dilma, deu “nota zero”, por entender que “o PT não cumpriu a sua missão histórica”.

Sobre a fama de radical, garantiu não se importar, mas reconheceu que o termo tem “conotação negativa”:

– Isso significa não querer simplesmente paliativos, atalhos, mas realmente querer mudanças estruturais e lutar por elas até o fim.

A seguir, os principais pontos da entrevista concedida aos jornalistas Carolina Bahia, Rosane de Oliveira e Tulio Milman.

O IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS

Não coloco o imposto sobre grandes fortunas como a solução para todos os problemas. É que meu tempo de TV é tão pequeno que a gente acaba tendo de simplificar muito as coisas. Mas nós temos uma plataforma ampla de medidas, que começa com uma revolução na estrutura tributária, na qual o imposto sobre as grandes fortunas é uma das medidas. Pelos nossos estudos, devido à grande concentração de riqueza que existe no Brasil, poderíamos arrecadar R$ 90 bilhões com esse imposto. Tenho insistido na ideia de que não quero tributar mais os riquinhos. Quero tributar mais os ricaços. A partir de R$ 50 milhões, a pessoa pagaria uma alíquota de 5% ao ano sobre todo o patrimônio pessoal, independentemente dos outros impostos que tenha pago. É um imposto para realmente fazer distribuição de renda. Está na Constituição, não sou eu que estou inventando.

A POLÍTICA ECONÔMICA

É preciso mudar completamente a lógica da política econômica. Por exemplo: em relação ao câmbio, precisamos ter controle de capitais. O câmbio não pode estar submetido à lógica de emissão de títulos para captar os dólares que entram de uma forma completamente irresponsável e são livres para sair no momento em que desejam. É preciso que o câmbio esteja submetido a uma lógica de interesse do país. Precisamos de dólares ou precisamos aumentar a emissão de reais? Essa é uma decisão que tem de ser tomada pelo Banco Central, mas ele não pode estar completamente submetido à lógica do mercado financeiro. Por que o Brasil tem de pagar a maior taxa de juros do mundo, se na Europa e nos Estados Unidos a taxa é quase zero? Isso faz com que o Brasil se escravize em relação ao capital financeiro.

POLÍTICA PARA CONTER A INFLAÇÃO

Mais de 60% da inflação dos últimos 20 anos foi fruto dos preços administrados pelo governo. Gasolina, luz, plano de saúde, escolas privadas, preços que o próprio governo determina. Eu seguraria a inflação, em primeiro lugar, a partir de uma mudança na lógica da produção de alimentos, com um modelo agrícola voltado para a pequena e média agricultura e a produção para consumo interno. E também a partir das tarifas administradas pelo governo. Vou segurar o preço da gasolina e o preço da luz. O recurso público (para bancar essa política) vai vir da mudança na estrutura tributária e do questionamento da dívida pública, que será auditada, assim como fez o Equador, que conseguiu anular 75% do passivo.

MEDIDAS AMARGAS

O Brasil sempre tomou medidas amargas para o povo e nunca para o capital. É claro que vou tomar medidas amargas, só que para o outro lado. Por isso tenho dito muito claramente: não vou governar para todos. Vou contrariar interesses. Quem diz que vai governar para todos acaba governando para os mesmos de sempre. O imposto sobre as grandes fortunas é uma medida amarga. O fim das isenções fiscais para setores da economia, como os bancos, é uma medida amarga. O aumento da tributação sobre os lucros é uma medida amarga. A suspensão do pagamento da dívida pública, principalmente a parte que vai para os bancos, também é.

MANIFESTAÇÕES DE JUNHO

O principal resultado foi uma maior consciência do povo da força que tem, porque a gente viu que as elites políticas tremeram naquele momento. Quando o povo tomou as ruas, muitas promessas foram feitas, poucas foram atendidas. O resultado concreto: o preço da passagem caiu, o voto secreto na Câmara terminou. Isso foi muito pouco em relação ao tamanho da mobilização. Isso tem a ver, para mim, com uma característica que foi a beleza e o problema de junho, que é a espontaneidade, a falta de uma direção política para o movimento. Quando Lula chegou ao poder, houve certa domesticação do movimento social mais institucionalizado. Junho rompeu com isso, passando por cima, inclusive, de sindicatos. Isso mostrou que já não há mais um controle, mas, ao não haver uma direção com pauta clara, com interlocutores claros, isso também dificulta a obtenção de vitórias categóricas e mais consistentes.

DOAÇÕES DE EMPRESAS PARA CAMPANHAS

O PSOL tem regra estatutária para lidar com isso. Não permitimos doações de bancos, empreiteiras e multinacionais. Existem setores da economia que têm relações promíscuas com o poder público e que não é saudável receber esse tipo de dinheiro.

A REESTATIZAÇÃO DE EMPRESAS

Há todo um arcabouço legal para que se possa fazer isso. Mas, por convicção, acredito que é fundamental que setores estratégicos do país estejam sob controle público. A energia e a telefonia são estratégicos. Obviamente que a partir de uma eleição e de uma vitória eleitoral do PSOL não é viável do dia para a noite se reestatizar tudo. Mas se o setor privado não aceita um congelamento de tarifas, por exemplo, e começa a boicotar o governo e a provocar apagões, isso vai gerar uma brecha legal para que se possa fazer a reestatização. É preciso discutir o que é uma empresa estatizada, porque hoje o Estado é uma burocracia que não tem controle público.

COMBATE À BUROCRACIA PELO CORTE DE CC

Grande parte da explicação para que obras não andem tem a ver com corrupção. Há uma relação muito promíscua entre os setores público e privado. Muitas vezes as empreiteiras acabam fazendo chantagem com os governos para aumentar o valor das obras. É só observar que o valor que elas ganham na licitação nunca é o valor final. O problema da licença ambiental tem a ver com a desestruturação do setor público e a falta de pessoal para fazer os estudos necessários. Temos de valorizar o servidor de carreira. Vou reduzir drasticamente os cargos de confiança, ao menos pela metade, e promover concursos públicos. O objetivo com o corte de cargos não é economizar. É qualificar. É dar ao servidor de carreira melhores condições de trabalho e maior protagonismo.

PAPEL DAS INSTITUIÇÕES

As instituições têm papel fundamental. O problema é quando estão completamente desconectadas da vontade popular. E o que nós vemos hoje, particularmente em relação ao Parlamento, é uma desconexão. Por isso, convocaria uma assembleia nacional constituinte para reorganizar essa estrutura política, para valorizar mais os mecanismos de democracia direta. Seria uma reforma ampla. Entendo que é preciso rediscutir o conjunto das instituições. É óbvio que o Ministério Público é uma instituição fundamental e que tem de ter independência, a Polícia Federal tem de ter independência. Mas os representantes eleitos pelo povo não podem ter independência em relação ao povo.

O FIM DO FATOR PREVIDENCIÁRIO

Vou acabar com o fator previdenciário e mudar, rediscutir essa visão de que a Previdência é deficitária. Ela tem de ser vista dentro da seguridade social, que não é deficitária. A gente não pode ver a Previdência só como “o que eu pago e o que eu recebo”. É um esforço do conjunto da sociedade para garantir a aposentadoria das pessoas idosas, depois que já contribuíram. Ainda voltaria a vincular o reajuste dos aposentados com o do salário mínimo, que foi outra herança maldita deixada por Fernando Henrique, que o PT foi contra, assim como foi contra o fator previdenciário, e que depois que chegou ao poder manteve.

PROGRAMA MAIS MÉDICOS

Esse programa do governo dialogou com uma preocupação e um problema real do povo, que é a falta de médicos. Mas prefiro um programa que estabeleça uma carreira para os médicos. O médico é tão importante quanto um juiz ou um membro do Ministério Público. Ter carreira ajudaria a resolver o problema dos médicos que não querem ir para pequenos municípios. Se isso fizer parte de uma carreira, que o médico sabe que vai ter para a vida toda, inclusive com a aposentadoria garantida, ele vai. Como medida emergencial, não acabaria com o Mais Médicos até que o problema fosse sanado. Mas a terceirização, porque na prática é isso, e a concessão de bolsas não são dignas para uma profissão tão importante. Aliás, para nenhuma profissão.

CONTINUIDADE DO BOLSA FAMÍLIA

Representa 0,5% do orçamento do país. É um gasto muito pequeno em relação ao tamanho do problema que nós temos de pobreza. Inclusive o valor que o governo estabelece, de R$ 70, não é reajustado desde Lula. Eu manteria o programa e aumentaria os gastos com o Bolsa Família, na medida em que diminuiria os gastos com o “bolsa banqueiro”, mas, obviamente, como um programa transitório. Se pretendo desconcentrar renda e gerar crescimento do emprego, posso ter uma perspectiva de saída desse processo de assistência social.

O PISO NACIONAL DO MAGISTÉRIO

Não tem outra saída: criar um fundo do governo federal para ajudar os Estados a pagar o piso dos professores. Com mudança na lógica da economia, questionando o esforço fiscal brutal que os Estados e que a União têm de fazer para pagar os juros da dívida pública, é possível abrir maior espaço fiscal para os Estados terem mais recursos para pagar o piso e, ao mesmo tempo, a própria União contribuir para isso, a partir de um fundo nacional que possa ajudar os Estados em maior dificuldade a garantir o piso.

A SAÍDA PARA A DÍVIDA DOS ESTADOS

Minha primeira medida como presidente seria renegociar esses contratos da dívida. Aliás, coisa que o PT defendeu muito aqui, na época do Olívio, inclusive com uma ação judicial. O próprio governador Tarso Genro também defendeu isso e não consegue, com o governo Dilma. Essa mudança do índice de correção não vai resolver o problema imediato. Vai possibilitar maior endividamento do Estado, mas não vai reduzir o desembolso mensal.

PAPEL DAS FORÇAS ARMADAS

É um papel de garantia de nossa soberania, de nossas fronteiras. Em hipótese alguma pode ter um papel de segurança interna, até porque as Forças Armadas são treinadas para a guerra e, portanto, não podem lidar com a população. E vou além, defendo a desvinculação das polícias das Forças Armadas, a desmilitarização, porque essa lógica da guerra que permeia as Forças Armadas também está incrustada nas polícias. É por isso que elas vão para as favelas executando. Defendo que a polícia tenha o papel de proteção e não de violência.

GOVERNOS DILMA E TARSO

Para Dilma, eu vou dar nota zero. Não é que ela não tenha acertado nada, porque nota é simbólica, muito arbitrária. Mas vou dar zero porque o PT tinha responsabilidade de fazer mudanças estruturais, na forma de fazer política, no combate à corrupção, no incentivo a maior participação da população nas decisões, na mudança na estrutura econômica. O PT se construiu como um partido que buscava essas transformações e, quando chegou ao poder, se adaptou à mesma lógica que combatia quando era oposição. Para meu pai, não vou dar nota nenhuma. Acho que não convém.

A RELAÇÃO COM TARSO

Tenho grande admiração pelo meu pai. Nossa relação nunca foi abalada por nossas diferenças políticas. Admiro ele inclusive pela visão crítica e e pela luta que faz dentro do PT. Ele acredita que ainda vale a pena lutar dentro do PT para mudar esses rumos. Então, tenho enorme respeito e carinho por ele como pessoa e admiração como político, mas não concordo com o caminho que escolheu.

O RÓTULO DE RADICAL

A esquerda europeia tem orgulho de ser chamada de radical, porque lá essa palavra não tem a conotação negativa estabelecida aqui. Não me importo de ser chamada de radical, sempre fazendo a ressalva de que sou radical não no sentido de não dialogar, de não ter disposição de transigir, mas de ser radical no sentido de ir à raiz dos problemas. Isso significa não querer paliativos, atalhos, mas querer mudanças estruturais e lutar por elas até o fim.


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